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26 de Abril de 2024

Concurso não pode questionar vida financeira de candidato

Publicado por Vitor Guglinski
há 9 anos

Em tempos nos quais os concursos públicos notoriamente vêm se tornando cada vez mais objeto de aspiração de considerável parcela dos cidadãos brasileiros, é com certa freqüência que se presencia uma infinidade de pessoas discutindo sobre a legitimidade de se eliminar candidatos em concurso público, em razão de os mesmos estarem inscritos em cadastros restritivos de crédito e similares.

Discutindo a questão com colegas da área jurídica, surpreendentemente alguns me apresentaram entendimento no sentido da possibilidade de se utilizar tal critério na fase do concurso destinada ao exame psicotécnico, onde se afere a capacidade psicológica do candidato para o desempenho da função e outros como critério a ser utilizado na investigação de vida pregressa.

Decidi então estudar o assunto, a fim de analisar as implicações jurídicas envolvendo o tema, sendo que da pesquisa extraí alguns fundamentos jurídicos, os quais permitem concluir que tal ato por parte do Poder Público, se praticado, se encontrará totalmente divorciado das diretrizes traçadas pelo Estado Democrático de Direito.

Recorrendo às bases constitucionais pertinentes ao tema, dispõe o art. 37, incisos I e II, da Constituição Federal de 1988, in verbis:

Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)

I — os cargos, empregos e funções públicas são acessíveis aos brasileiros que preencham os requisitos estabelecidos em lei, assim como aos estrangeiros, na forma da lei; (Redação dada pela Emenda Constitucional 19, de 1998)

II — a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração; (Redação dada pela Emenda Constitucional 19, de 1998)

Da leitura do dispositivo e seus incisos, verifica-se que a Carta Magna conferiu à lei regular o acesso aos cargos e empregos públicos. Coube à Lei. 8112/90 disciplinar o Regime Jurídico dos Servidores Publicos Civis da União, das autarquias e das fundações públicas federais, sendo que os requisitos básicos para a investidura em cargo público estão dispostos no artigo , e incisos, do diploma supra citado, o qual passo a transcrever:

Art. 5º São requisitos básicos para investidura em cargo público:

I — a nacionalidade brasileira;

II — o gozo dos direitos políticos;

III — a quitação com as obrigações militares e eleitorais;

IV — o nível de escolaridade exigido para o exercício do cargo;

V — a idade mínima de dezoito anos;

VI — aptidão física e mental.

Analisando as exigências legais acima, percebe-se que o legislador estabeleceu em lei critérios objetivos para o ingresso no funcionalismo público, inclusive em relação a outros requisitos por ventura exigidos em razão do cargo pretendido, o que ficou reservado ao disciplinado pelo § 1º do aludido artigo, o qual prevê que “As atribuições do cargo podem justificar a exigência de outros requisitos estabelecidos em lei”.

Registre-se que um dos traços marcantes dos concursos públicos é o zelo pela igualdade entre os participantes do certame, sendo que somente a lei pode estabelecer restrições de acesso a determinados cargos, e só nos casos onde determinadas características inerentes ao candidato forem incompatíveis com a natureza da função a ser desempenhada. Tal decorre do princípio da isonomia, o qual já se faz presente no artigo , IV, da Constituição, consignando que um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil a promoção do bem de todos, vedando quaisquer formas de discriminação (grifei). Nesse sentido, Celso Antônio Bandeira de Mello nos brinda com seu costumeiro brilhantismo:

“Os concursos públicos devem dispensar tratamento impessoal e igualitário aos interessados. Sem isto ficariam fraudadas suas finalidades. Logo, são inválidas disposições capazes de desvirtuar a objetividade ou o controle destes certames. É o que, injuridicamente, tem ocorrido com a introdução de exames psicotécnicos destinados a excluir liminarmente candidatos que não se enquadrem em um pretenso ‘perfil psicológico’, decidido pelos promotores do certame como sendo o ‘adequado’ para os futuros ocupantes do cargo ou emprego.

Exames psicológicos só podem ser feitos como meros exames de saúde, na qual se inclui a higidez mental dos candidatos ou, no máximo — e ainda assim, apenas no caso de certos cargos ou empregos, para identificar e inabilitar pessoas cujas características psicológicas revelem traços de personalidade incompatíveis com o desempenho de determinadas funções” (In Curso de Direito Administrativo, 11ª ed., São Paulo: Malheiros, 1999, págs. 194 — 195).

Assim sendo, encontramos um dos fundamentos jurídicos a coibir tal prática por parte do Poder Público, na medida em que se perquirir a idoneidade financeira de outrem, ao argumento de que um indivíduo que deve a outro não é psicologicamente apto a desempenhar suas funções em cargo ou emprego público, extrapola a órbita do interesse público e foge aos critérios objetivos de avaliação do candidato.

Da mesma forma não é cabível a utilização de informações ligadas à vida financeira do indivíduo na investigação de sua vida pregressa, uma vez que o que interessa ao Poder Público são as quitações do indivíduo perante o Estado, ou seja, sua vida pública. Tanto é verdade que da leitura dos editais é possível perceber, nesse particular, que as exigências neles insculpidas visam colher informações relativas ao comportamento do candidato perante a sociedade, isto é, investigar se aquele se conduz consoante o mínimo ético exigido pelo Direito, necessário ao convívio social sadio, valendo lembrar que um dos princípios reitores do concurso público é o da vinculação ao edital.

Mesmo que o instrumento convocatório estabeleça tal critério, certamente poderá ser impugnado, eis que estará eivado de inconstitucionalidade. E mais: a autoridade responsável pelo certame indubitavelmente poderá ser paciente em mandado de segurança, na medida em que, preenchidos os requisitos legais para a investidura em cargo ou emprego público, em caso de se iniciar as nomeações, nasce o direito líquido e certo do candidato a ser nomeado, uma vez que estamos diante de ato vinculado da administração.

Diante de tais considerações, passemos agora a analisar a natureza jurídica dos interesses envolvidos no presente debate.

No que diz respeito aos cadastros restritivos de crédito, é imperioso registrar que estes são destinados a regular o fornecimento de crédito ao consumidor no mercado de consumo. Foi o meio encontrado pelos fornecedores de se protegerem dos consumidores inadimplentes, a fim de evitarem possíveis prejuízos à sua atividade empresarial. As relações de consumo, consoante disposições do Código de Proteçâo e Defesa do Consumidor, são aquelas travadas entre consumidor e fornecedor, sendo de suma importância frisar, para fins de intelecção do proposto neste texto, que são relações estabelecidas entre particulares. Portanto, relações de direito privado, onde a intervenção estatal somente é admitida naqueles casos excepcionais onde a vulnerabilidade do consumidor perante o fornecedor que age abusivamente reclama a tutela do Estado.

Posto isto, conclui-se então que as informações contidas nos cadastros de proteção ao crédito servem apenas como meio de consulta por parte das empresas associadas, objetivando unicamente resguardar seus interesses empresariais. Inexiste interesse público a ser tutelado com a criação daqueles cadastros, sob pena de invasão da vida privada do indivíduo. A esse respeito, José Afonso da Silva discorre sobre a vida privada como sendo integrante da esfera íntima da pessoa, seu modo de ser e viver, partindo da constatação de que a vida das pessoas compreende dois aspectos: um voltado para o exterior e outro para o interior, sendo que,

“a vida exterior, que envolve a pessoa nas relações sociais e nas atividades públicas, pode ser objeto das pesquisas e das divulgações de terceiros, porque é pública. A vida interior, que se debruça sobre a mesma pessoa, sobre os membros de sua família, sobre seus amigos, é a que integra o conceito de vida privada, inviolável nos termos da Constituição” (In Curso de Direito Constitucional Positivo, 14ª ed., São Paulo: Malheiros, pág. 204).

Outro aspecto importante sobre o qual se deve ponderar diz respeito à abusividade dispensada na utilização dos cadastros de proteção ao crédito. O cotidiano forense permite vislumbrar diária e freqüentemente demandas consumeristas onde em muitos casos o consumidor se encontra “negativado” indevidamente. Portanto, nem sempre as informações constantes dos bancos de dados dessa natureza são confiáveis, o que pode levar o Poder Público a cometer uma injustiça sem tamanho ao eliminar dos concursos públicos candidatos cujos nomes constam daqueles.

Por fim, diante dos fundamentos alinhados, conclui-se que a investigação da vida financeira dos candidatos a cargos e empregos públicos é irrelevante e ilegítima por parte do Poder Público, porquanto as respectivas informações dizem respeito à vida privada do indivíduo, afigurando-se, portanto, critério subjetivo de avaliação, enquanto a ordem pública reclama um comportamento objetivo por parte de cada membro da sociedade, isto é, sua conduta conforme as exigências inerentes à coletividade.

Ninguém é pior que outrem por estar em débito junto a particulares, ressaltando, ainda, que grande parcela da nossa população enfrenta dificuldades financeiras, até mesmo em razão do abuso do poder econômico das grandes corporações, sendo fato notório que o próprio Estado assegura proteção àquelas, em detrimento dos direitos e garantias individuais elencados na Constituição Federal.

Perquirir acerca da vida privada quando somente é admissível a verificação da vida pública é nada menos do que garantir a desigualdade perante a lei.

Fonte: Consultor Jurídico

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Nem vou entrar no mérito da desigualdade, em que para as grandes empresas devedoras na esfera cível não possuem qualquer impedimento ou restrição de contratarem com o poder público ou mesmo de receber alvará de funcionamento e que diversamente do particular seja qual for a dívida, recebe uma restrição em sua vida econômica ou uma negativação.

Por vezes, até justa a restrição, mas para ser justo em um Ordenamento Jurídico não se pode observar critérios pontuais e promover a desigualdade em patente benefício de uma classe econômica, ou seja, atingi-se somente a pessoa física, enquanto empresas abarrotam o Judiciário com as mais diversas dívidas com o consumidor. Vizinho não pode negativar vizinho, parente não pode negativar parente, consumidor não pode negativar as empresas, profissional liberal não pode negativar clientes, empregado não pode negativar o patrão e etc.

No caso em tela, entender que uma restrição privada de dívida, de natureza cível, não penal, nem administrativa, se estenda para a ocupação de um cargo público é um disparate, aviltante, até porque dever ,em si, não reflete a moral ou conduta social de ninguém.

Ter dívida não é crime e sequer comporta prisão cível, que embora seja uma medida de Direitos Humanos para o devedor sem capacidade de solvência, e liberal para o setor empresarial "Se gritar pega ladrão, não fica um meu irmão".

E ainda, se por causa de dívida não se pode entrar na vida pública, então a República Federativa do Brasil devedora por excelência jamais poderia ser um Estado, seria um paradoxo em si mesmo. continuar lendo

Vejo a questão por uma lógica muito simples:

a pessoa é devedora porque a) está desempregada; b) contraiu dívidas maiores que podia pagar. No caso de b), as dívidas podem ter sido acidentais, como uma doença na família, ou a perda de uma fonte de renda, ou podem ser por descuido financeiro.

Em todo caso, qual a solução básica para um devedor? Ganhar dinheiro ou ganhar mais dinheiro. Assim, se ele não pode trabalhar (como servidor público, por exemplo), como então ele pagará sua dívida?

Este, sim, é o que considero absurdo ao negar trabalho para quem justamente precisa do dinheiro. continuar lendo

Parabéns! - Até que enfim, alguém PERCEBEU a maldade que fazem com o candidato que foi aprovado num certame e por se encontrar em situação financeira difícil, tem que fazer um sorteio, tipo: - guardo dinheiro para comer; ou pago a inscrição do concurso?

Claro que sempre alguém dá uma força e lá vamos nós para nos inscrever, estudar , passar e depois de aprovados; - Vem um mente capta - o verdadeiro estraga prazer e dá àquela má notícia que sempre é criada pelos próprios organizadores do evento, caí como luva - para desanimar qualquer cristão que está perto de realizar seu sonho e Tchumm... - num passe de mágica, faz uns 30% dos candidatos desistirem na fila por pensarem que não vão conseguir limpar seu nome até a fase final, isso é um crime!

Consideremos que se o candidato está com pendências no comercio é porque está sem trabalho! - Ou será que tem alguém que se alegra de viver assim, endividado ?

Que perde horas de sono em cima de livros e desejoso de vencer para se livrar das dívidas - se vê mal por ter que passar por mais um constrangimento na hora da entrevista!

Esperemos que com esse artigo os responsáveis pela realização dos certames tenham um pouco mais de semancol e atenham mais na elaboração das provas do que ficar dando ideias que põe o bom candidato para fora do concurso, mesmo antes do sonho se realizar! continuar lendo

De pleno acordo! E o texto veio a calhar...! continuar lendo

Muito obrigado por comentar! - O que mais chateia em concurso, são boatos de quem já está contratado, com o salário em dia e tudo mais, se preocupando com o estado do NOME, se limpo ou sujo! - deveriam sim, dar importância, a nota final obtida pelo candidato e não se é bom ou mal pagador de dívidas!

Ou será que ninguém nos dias de hoje é tão correto financeiramente que não deva nada a ninguém?

Se alguém tem dúvidas? - é só ler o endividamento do brasileiro pelo uso excessivo do cartão de crédito, onde muitos de nós ostentamos um status que é só de aparência!

Valeu!

Edson continuar lendo

Parabéns pelo brilhante texto!! continuar lendo

Excelente matéria, traz uma nova linha de pensamento para um problema que constantemente é observado no meio jurídico. Está de parabéns! continuar lendo